No gabinete
O dia passou rápido e a noite chegou mais fria que o esperado. O céu estava limpo, e assim permaneceria por muito tempo, segundo a meteorologia. As estrelas pipocavam na escuridão do cerrado de inverno. A vidraça luzidia do arquiteto genial mostrava o mundo lá fora sem muitos mistérios.
Os faróis e as buzinas dos carros ao longe indicavam as horas, nem precisava olhar o relógio. Fim de expediente, os prédios da Esplanada dos Ministérios apagavam suas luzes aos poucos, trazendo uma escuridão triste.
Nas salas do lado de fora do Gabinete, porém, as luzes ainda estavam todas acesas, uma multidão de assessores, secretários, assistentes e aspones percorriam os corredores com papéis empilhados e pastas de documentos inúteis. Os telefones tocavam sem parar, com a irritante campaínha usual.
Afrouxando a gravata, sozinho, o Presidente olhou uma vez mais o horizonte familiar. Estava ali há tantos anos, sonhara tanto com isso tudo, só que hoje o sentimento estava um pouco diferente. Que as coisas não eram exatamente como ele havia pensado no passado militante, que as mudanças não eram tão fáceis como havia planejado, isso ele já sabia. Mas hoje o problema era perturbador. Daqui, não sabia mais para onde iria, que direção tomaria. A nação tinha vícios e artimanhas mais profundos do que ele previra. Havia defendido assessores diretos, pessoas queridas mesmo, amigos de longa data, de coisas que seus valores não lhe permitiriam fazer nunca, mas que essas pessoas fizeram. Alegou não saber de muita coisa, fingiu-se de morto em tantas outras, viajou o que pôde, aproveitou sua vida de presidente tão desejada. Mas estava em falta consigo mesmo.
Hoje, olhando a cidade da janela do gabinete, tinha se dado conta do lado negro que se negara a ver todos esses anos. Sempre achou que a imprensa exagerava, mas como defender agora essas pessoas e essa imundície que o cercava por todos os lados. De onde vieram todos esses vermes ao seu redor? Ou melhor, quando eles se transformaram em vermes?
Ainda sentia um amor grande pelo seu partido, mas não reconhecia mais as pessoas ali. Entendeu, nos anos de presidência, todos os seus colegas anteriores, tão duramente criticados por ele de impotências e incompetências. Aqui, já cansou de ver os olhares de menosprezo dos embaixadores de carreira para si; do deboche das esposas desses em relação às mãos ásperas da primeira dama, sua mulher; os acordos cerrados que jogariam o país no lixo e que ele nada podia fazer, sob pena até mesmo de morrer; das mentiras que engoliu e das mentiras que cuspiu.
Andou até sua mesa esfregando as mãos e bebeu um pouco do uísque doze anos que estava no copo e lembrou-se que também debochavam de seu gosto pelo alcóol. Mas não havia como estar ali sem alguma coisa que lhe adormecesse os sentidos de vez em quando. De trabalhador braçal que tinha sido, ao terno bem cortado e ao carro com motorista que o cargo lhe dava, havia pisado em alguns de seus valores mais básicos, mas era o preço de estar ali. E queria estar ali. Mas lá no fundo, essa inversão de valores ainda incomodava e muito.
Daqui a pouco sairia do gabinete para falar sobre as prisões do banqueiro, do investidor e do ex-prefeito, mas não tinha certeza se queria que essas declarações que lhe instruiram fossem as suas. Havia conversado com o Secretário de Gabinete, havia lido e relido os memorandos secretos da Polícia Federal com os detalhes da operação, havia sido instruído pelos seus colaboradores mais confiáveis sobre todos os detalhes que a imprensa e o público ainda não conheciam, se é que conheceriam. Tinha que considerar também aquele ministro do supremo com sede de poder. Teria de dar uma declaração sobre o tal telefonema, teria de proteger seu governo.
Mas o que o cidadão que ele era queria mesmo era dizer tudo, dizer que eles eram todos culpados, que a conversa foi assim mesmo, que os rombos eram ainda maiores do que a imprensa havia dito, que muito mais gente do Banco Central estava envolvida, que os Supremo estava envolvido, que o mensalão era verdade, tudo, queria dizer tudo, queria esclarecer as CPIs, queria acabar com essa conversa mole de político corrupto a que se submetia, sem ser. Ele não era assim, ou assim pensava.
Estava só, havia conseguido estar só em seu gabinete por uma hora inteira e gostaria de ficar mais. Gostaria de ir ao Park Shopping e ao cinema com a primeira dama, gostaria de jogar bola em um campinho de várzea, gostaria de jogar conversa fora naquele bar de São Bernardo do Campo com os companheiros do jeito que eram antes, não do jeito que são hoje. Gostaria de dormir sem ninguém de prontidão por perto. Gostaria de ser ele de novo, de escolher as suas próprias roupas, de comer sardinha frita e de desfrutar tantos outros prazeres simples. A presidência tinha esse preço alto, deixar de lado as outras coisas da vida. Ele era Presidente em tempo integral. Mas que o uísque de boa qualidade não lhe dava dor de cabeça, isso era verdade.
Alguém bateu na porta e lhe disse, do lado de fora, que a imprensa estava pronta e que ele deveria sair em poucos minutos; outra voz lhe disse que estava tudo pronto, que não poderia atrasar... Ele respondeu um “já vou” sem convicção.
Foi até o reservado e olhou no espelho. Estava muito velho para isso tudo, cansado disso tudo. Ajeitou a gravata, vestiu o paletó. Pegou os óculos em cima da mesa, colocou no porta-óculos e enfiou no bolso interno do paletó, poderia precisar.
Muitas vozes do lado de fora da porta, outras batidas, outro chamado. Ele não respondeu, andou até a porta, parou, respirou fundo por um minuto, pensando que só mais alguns anos e não precisaria mais mentir, não precisaria mais ser outra pessoa, voltaria a ser ele mesmo, pai, avô, marido, companheiro. Sorriu com cumplicidade para as fotografias dos outros presidentes na parede oposta, abriu a porta e entregou-se aos abutres que o aguardavam.
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