8.23.2005

As Cores de Matilda

A casa vitoriana branca dominava imponente o jardim estreito. Era uma casa alta, com uma escada estreita que levava até a porta principal lá no alto. A pintura mostrava a passagem do tempo e as janelas há tempo não viam água. O cimento quebrado do piso do pátio sem sol estava limpo e havia flores ao longo dos muros. Alguns canteiros exibiam ainda umas plantas tristes. A mesa no centro da área cimentada estava repleta de iguarias, bolos, danishes, croissants, struddel, um pouco de cada canto do mundo ali reunido.
Neste instante a porta da casa se abriu e surgiu Leo com seu terno imponente, meio gasto, meio fora de moda, um pouco apertado na barriga, mas estava muito elegante e distinto, um tipo de velho gentleman. No Rio, seria um malandro da velha guarda. Estava já em seus cinqüenta e tantos, se não sessenta anos, mas tinha o gestual mais jovem, um olhar ainda brilhante. O cabelo, bem arrumado, tinha um topete que fazia uma volta e ia para trás, aumentando a sensação do esmero que ele cuidou em ter naquele dia. Demonstrou uma alegria pouco comum aos americanos quando viu as pessoas reunidas no jardim, esperando a abertura da porta. Sua voz tinha um timbre falso, como se estivesse modificando a voz, meio fanho, meio infantil. Não combinava. Fez um trejeito pouco original e desceu as escadas como um personagem de teatro absurdo. Fazia mesuras e trejeitos típicos do ator desfocado. Deslocado. Ou fora da vida.
Assim fomos apresentados e assim entramos em seu mundo.
No momento seguinte, apareceu Matilda no alto da escada e chocados ficamos ao percebê-la tão idosa. Vestia um casaco verde musgo meio desbotado e uma camisa com um estampado tipo Pucci nos mesmos tons. Uma saia preta velha, sandália preta de couro pesado e meias verdes, grossas, completavam o visual desconcertado dela. Trazia um cabelo desgrenhado, com franjas mais curtas do que deveriam, mal-cortadas e despropositadas para a idade dela. O bigode, muito maior do que deveria ser em uma mulher, não era descolorido há séculos. Tinha uma face estritamente européia, não era uma mulher comum, definitivamente. Os olhos azuis iam e vinham, mostrando a atividade mental e a percepção daquilo que acontecia ao seu redor, muito embora várias palavras já lhe fugissem à memória e pessoas e lugares não lhe fossem mais tão familiares. Refugiava-se pouco a pouco nos doces desvãos da senilidade. Era ela própria dramaturga e atriz, escrevendo e vivendo seu próprio destino ali, com Leo, muitos anos mais novo, mas fiel como cão velho.
Matilda era mulher, claramente mulher. E artista. Uma inglesa velha com alma de artista e profundamente feminina. Ela poderia ser mãe, avó, bisavó, e nem sei se teve filhos.
Cumprimentou-nos de maneira calorosa e seu sotaque inglês soou como música no meio de tantos outros sotaques ali presente. Pronunciava as palavras do jeito que provavelmente o próprio Shakespeare pronunciava, o que aumentou ainda mais a sensação teatral da cena que vivíamos. Muitas vezes eram palavras fora do uso cotidiano nesse país da pressa, soando, seu inglês, fora do tempo, mas lindo.
Nos convidaram à subir e ver as pinturas, as aquarelas e óleos que Matilda pintava como ninguém. A casa estava aberta, uma vez que seu estúdio funcionava em sua sala de estar.
A sala tinha poucos móveis, e esse poucos carregavam uma grossa poeira secular. Vidros de perfume abertos, batons destampados e outras quinquilharias de mulher estavam espalhados em cima do aparador da entrada com a mesma camada grossa de pó em cima. Vidros de diferentes formatos e tamanhos eram vistos por todo o lado. O tapete gasto e sujo mostrava o ir e vir de muitos e muitos anos. Cheirava a gato. Aliás tudo cheirava a gato. Nem mesmo o cheiro da tinta à óleo conseguia ser percebido naquele ambiente com cheiro de gato.
As pinturas estavam por toda a parte, literalmente: chão, mesa, cadeiras, parede. Onde se olhasse, lá estava mais um quadro. As aquarelas com sua serenidade característica, mostravam cenas da cidade em que vivíamos. Os óleos traziam retratos da própria Matilda, do Leo e de outros que encomendaram, como a mulher negra, retratada sorrindo meio sem graça e com uns olhos tão cheios de raiva. Ou dor. Cores intensas, de todos os matizes, esplhavam-se pelas telas como se não houve outro destino para elas, mas somente repousarem eternamente nas telas de Matilda. Eram seu habitat e ali estavam.
Aos quadros prontos, se misturava todo o material usado, revistas, livros e histórias, muitas histórias.
Matilda lembrava onde pintou cada um, e explicava exatamente o que viu e viveu, embora ali estivesse pra que víssemos em suas pinturas. Explicou que pintou um certo barco na parte detrás de um restaurante caro e que mesmo assim pediu-lhes água para a aquarela. E riu muito do inusitado da coisa. A pintura também era linda.
Leo ouvia algumas das histórias, novamente encantado com sua mulher. Circulava e conversava com as pessoas como um perfeito anfitrião de outra época.
Curioso como nenhum quadro tinha preço. Parecia que ela não queria que eles se fossem, parte de sua vida se despregando, saindo de seu controle. A sensação que tive era de que Matilda queria manter-se viva através daquilo que criava e vender não era exatamente o que lhe ocorria. A necessidade de dinheiro, porém, era visível, quase sólida. Não perguntei o preço dos quadros que gostei por sentir-me invadindo sua intimidade. Não poderia. Nem sei se poderia pagar.

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